Sobre a música: conversa com Fábio Zanon

Sobre a música: conversa com Fábio Zanon

Texto incluído na linda#1 impressa (set. 2014)

 

No último Julho, fui assistente de produção do 45o Festival Internacional de Inverno de Campos do Jordão. O Festival, sem dúvida o maior do país para a música clássica, conta com uma série de atividades que visam o aperfeiçoamento profissional de jovens músicos, tais como aulas com renomados professores, recitais deles junto aos professores, e a organização de uma orquestra acadêmica, formada por estudantes mas regida por maestros do calibre de Marin Alsop e Giancarlo Guerrero.

No meio de tudo isso, o violonista Fábio Zanon, coordenador artístico-pedagógico do Festival, tenta harmonizar a relação entre alunos, professores, produção, artistas e público.

Numa sexta-feira, fui recebido para um café na sua casa, e ali conversamos sobre diversos assuntos. Parte de nossa conversa encontra-se redigida abaixo, abordando temas como a formação musical, o contato com a plateia, a relação com o compositor e a música dentro da sociedade. Sugiro a todos que tomem um bom café, como eu tomei, ao ler/ouvir as palavras de Fábio Zanon:

 

TIAGO: O que eu queria conversar com você é um pouco sobre a música na sociedade, e também, no papel do Festival de Música como um lugar de aperfeiçoamento de jovens músicos. O que me parece é que a música clássica, por excelência, é o lugar do ultra-especialismo dentro da música. O cara toca violino, e de repente ele se especializa em um determinado repertório, em um determinado lugar espaço-temporal… E me parece que o Festival de Música pode servir para tirá-lo um pouco desse lugar tão especializado e tão sozinho para também mostrar como o encontro com o outro pode aprimorá-lo.

FÁBIO: Tem várias questões na sua pergunta… A primeira é, a partir do momento em que você trata qualquer gênero de música como subgênero de música, isso é o beijo da morte. Eu vejo, por exemplo, a história do jazz ou do rock, e me dá uma sensação muito forte de dèja vu, porque é exatamente o que aconteceu com a música clássica, que, quanto mais clássica, quanto mais erudita, quanto mais exclusiva ela quer se pôr, mais pra trás ela acaba por andar. E já se percebe isso no jazz: você tinha o pessoal do ragtime, no começo do jazz, aquela coisa livre, em que eles usavam inclusive a música clássica como pano de fundo para exprimir a liberdade deles, e de repente você entra em um período meio romântico com as big bands, como se fossem as grandes orquestras do jazz, e então você tem o bebop, como se fosse a vanguarda, que foi quando o público saiu do jazz… E hoje você tem uns caras que estão tentando resgatar o jazz como era, antigamente, como se fossem os instrumentos de época do jazz. Acaba me dando uma sensação muito forte de dèja vu.

Quando você vê, por exemplo, que a fatia de mercado que o jazz ocupa hoje é igual à da música clássica, se não for menor. Acaba vendendo no mesmo nicho, para públicos ainda mais seccionados. Então eu acho que essa ideia de dividir por gênero acaba sendo um tiro no pé logo de saída.

Mas sabendo que a gente trabalha com isso, com instrumento de orquestra, com música sinfônica, acho que [o Festival Internacional de Inverno de] Campos [do Jordão] acabou se tornando uma super-academia. É mais ou menos isso que estava previsto na concepção original: você ter uma academia de formação de grandes músicos de orquestra, e que, com alguma sorte, um pouco mais de recurso, você poderia conviver com compositores, com regentes, com artistas de música de câmara e tal. Então, eu acho que ele acaba sendo uma tentativa de ser três coisas onde, em outros lugares, fazem uma só: normalmente, você vai a um festival e tem um curso de orquestra; ou você tem um curso de música de câmara; ou você tem um curso de música de contemporânea… Normalmente, você tem coisas menos dependentes, que raramente são interdependentes.

Você tem a parte da programação de concerto, em que a gente tenta ter alguma espécie de visão, de filosofia por detrás, e que aproveite a presença dos professores que estão lá dando aula e que faça com que isso convirja para a prática coletiva, que é o trabalho orquestral. Acho que fica um calendário bastante apertado, bastante estressante pra todo mundo envolvido, o que, por outro lado, é bom porque eu acho que os alunos não têm a oportunidade de tocar o tempo inteiro com pessoas da mesma excelência. Você tem um naipe de violino que, entre primeiros e segundos violinos, tranquilamente dez pessoas poderiam ser spalla. O lugar em que essas pessoas tocam não tem dez pessoas que poderiam ser spalla. Então, ali eles lidam com pessoas com que eles têm certa afinidade na busca pela qualidade, e é aí que está o grande negócio: quando você tá cercado por gente que tem a mesma ambição, você tenta dar o seu melhor, e eu espero que seja esse o vírus que a gente inocula neles.

TIAGO: Em geral esses jovens músicos já tocam em orquestra, não?

FÁBIO: Quase todo mundo. O perfil do estudante de música mudou muito ao longo dos últimos 20 anos. Quando eu fiz faculdade (eu entrei na faculdade em 84), eram 20 alunos. E dessas 20 pessoas tinha eu e mais um que vínhamos de escola pública; o resto vinha de escola particular, sendo que dos 20, pelo menos uns 15 já tinham feito uma outra faculdade e abandonado no meio. Praticamente todo mundo havia estudado piano ou violão no conservatório, e quando mudou de instrumento, se é que mudou, foi bem mais tarde na vida. Alguns deles queriam ser compositor, e a taxa de desistência era muito alta.

Portanto, estamos falando aí de um pessoal classe média, classe média alta, que tava qualificado pra passar no vestibular. Hoje em dia, se você pegar 20 pessoas ali na faculdade, pelo menos uns 10 são de igreja evangélica ou de programa social. E se eles vêm de um ambiente que não lhes permite fazer um curso superior de música, eles se viram, para fazer suas carreiras acadêmicas de outro jeito, seja fazendo uma faculdade particular barata, ou estudam numa EMESP, numa escola mais livre de música. Enfim, eles se viram para completar suas formações musicais sem depender tanto do diploma universitário de uma universidade pública.

Então, é com esse perfil que a gente lida, você continua tendo um pessoal classe média, mas, proporcionalmente, a presença deles diminui. Acho que isso muda completamente a configuração com que você lida com os alunos; acho que eles estão mais dispostos a tocar em orquestra, pra começo de conversa.

TIAGO: E você, você sempre tocou violão?

FÁBIO: Sim, eu sempre toquei violão.

TIAGO: E você nunca tocou em orquestra?

FÁBIO: Nunca toquei em orquestra.

TIAGO: Você acha que faz muita diferença?

FÁBIO: Faz muita diferença. Isso é uma coisa que, quando eu trabalho como regente, é um problema que eu tenho que abreviar. Quem tem a prática de tocar numa orquestra a vida toda sabe muito melhor a minúcia do relacionamento ali dentro.

Por outro lado, você acaba não se deixando envolver ou contaminar por essa gosma que acaba criando entre as pessoas que tocam na orquestra, que acaba sendo meio inevitável. Não falo gosma no sentido pejorativo, claro, mas é essa liga ali que se cria e que acaba propiciando certos vícios de relacionamento e de maneira de encarar a própria música. Então é até bom, de uma certa forma, você poder olhar pra ele com um certo distanciamento.

O que acontece é que eu venho de Jundiaí, onde sempre houve uma prática de orquestra muito legal. E quando eu penso num grupo de alunos tocando juntos, eu penso naquilo que eu via em Jundiaí, e não nesta coisa um pouco viciada que a gente vê de vez em quando. Acaba sendo bacana você manter uma ideia de como a coisa pode ser boa.

TIAGO: Eu acho engraçado, para nós, que não somos da orquestra, olhar aquilo ali de fora. Parece que, para aquelas pessoas que é natural estar ali, que aquela é a vida que se tem…

FÁBIO: E é uma vida muito complicada. Porque o trabalho de um maestro, por exemplo, será sempre uma relação negativa em relação aos músicos, porque eles estão ali para falar o que está errado, e não para dar parabéns pelo que deu certo. Até por uma questão de administração do seu tempo de ensaio. Você tem que corrigir erros.

Então, é uma relação muito difícil, trabalhar como maestro: ao mesmo tempo, você tem que fazer com que os músicos corrijam erros básicos, e busquem expressar alguma coisa musicalmente com aquilo. Muitas vezes você tem que desviar, você tem que conduzir o estudante, ou até mesmo o músico profissional, a buscar a auto-expressão e, neste processo, corrigir aquilo que está errado. Acho que essa é uma maneira mais século 21 de lidar com as pessoas, não sei se é mais eficiente, mas é com certeza, aquela que gera menos problemas de convivência.

TIAGO: Falando em século 21, a Orquestra vai acabar?

FÁBIO: Eu acho que a composição modernista (e mais uma vez aqui estamos criando um subgrupo), viva ou já morta, já histórica (modernista no sentido de se considerar vanguarda dentro do que se produz hoje) gerou um seríssimo problema de auto-veiculação. Acho que ela acabou não conquistando um espaço que justifique uma relação beligerante com a instituição Orquestra Sinfônica. Acho que, hoje em dia, a instituição Orquestra Sinfônica tem a seu favor um coisa muito difícil de refutar: ganho do ponto de vista de comportamento social para pessoas jovens.

Por exemplo, quando você pega o Projeto Guri ou a Sinfônica de Heliópolis, que estão em áreas de situação de risco de criminalidade, e, ali, você tem um grupo de 600 pessoas em que ninguém tem histórico policial, isso já é uma vitória. É algo que um líder, um político pode brandir, “olha só, custa caro, mas não tem ninguém usando droga.” Então, sob o viés social, a Orquestra passa a fortalecer o seu papel. Acho que essa maneira soft de se produzir uma disciplina pessoal, é uma coisa que está trabalhando a favor da Orquestra.

E, ainda sobre a Orquestra poder estar com dias contados, eu acho que ela tem um segundo papel, que é o da curadoria de museu, que dificilmente vai se esgotar. Pois quando uma pessoa consegue finalmente chegar em um momento da sua vida em que ela é uma apreciadora séria de música, ela passa a dar espaço a uma nova geração que vem atrás e que ainda não descobriu nada. Acho que essa coisa de seguir tocando Haydn, Beethoven, Brahms, Stravinsky, acaba não tendo um fim: quando você forma um ouvinte já tem uma nova geração de ouvintes chegando no pedaço.

E isso acontece mesmo com o violão. Se você pensar nas grandes obras para violão, como a Catedral de [Agustin] Barrios, os Prelúdios de [Heitor] Villa-Lobos… Chegam pra mim e perguntam, “pô, mas você não cansa de tocar os Prelúdios do Villa-Lobos?”, e eu penso, “olha, eu até canso, mas meu público não cansa de ouvir!” Então toda vez que eu vou tocar, acabam falando “pô, mas você não tocou nenhum Prelúdio!” E, enfim…

O que acontece é que você acaba organizando sua vida a longo prazo: agora eu não quero tocar tudo do Villa-Lobos, mas quando eu tiver 55 anos talvez me dê um outro estalo, e eu comece a ler aquilo de outra forma, que faça com que aquilo volte ao meu programa. Então, acho que as Orquestras funcionam um pouco assim, precisam voltar àquele repertório meio manjado, à medida em que elas vão inoculando o vírus da curiosidade no público, trazendo obras que são um pouco periféricas ao cânone central. Acho que toda Orquestra faz isso hoje. Esse é o papel curatorial que a Orquestra Sinfônica acabou assumindo, e que, pra muitos, é até o papel principal.

TIAGO: Você falou sobre tocar Villa-lobos, tocar esse repertório que você toca há muito tempo, e me parece que o músico se relaciona com outras pessoas em três momentos: quando você toca a música de um outro compositor, e você se relaciona com ele; quando você toca com alguém; e no momento em que você se apresenta. Eu queria que você falasse um pouco como é se relacionar com a plateia.

FÁBIO: Francamente, eu toco pra mim. Acontece de eu estar expondo aquela música pras pessoas. E, apesar de eu tocar pra mim, desde muito criança, meus professores sempre valorizaram se desenvolver uma técnica de sonoridade, um estilo de apresentação, que fosse para o palco. O violão que se toca hoje, e muito do piano que se toca hoje, e muito da música de câmara que se toca hoje é tocada para o microfone. Acho isso sofrível, do ponto de vista de eficiência no palco, porque as pessoas têm uma técnica de produção de som deficitária e valorizam um tipo de interação que não se projeta bem em um teatro grande. Toda a minha técnica, em contraponto, foi elaborada tendo isto em vista, em comunicar bem a música.

E desde criança, meu professor Guedes, que é um personagem muito especial, me levava pra tocar em igreja, em hospital, em colégio, em escola primária, em orfanato, em asilo… Até em quadra de basquete em Várzea Paulista eu toquei, ao ar livre. Não durante o jogo, mas durante o intervalo. Então você imagina os tipos de público pra que eu já toquei na minha vida.

Você acaba desenvolvendo uma certa desinibição pra entender um pouco a situação e conseguir entender que aquele programa que você enviou antes, e que imprimiram, é melhor deixa pra lá, e que talvez você deva conversar com as pessoas a respeito da música que vai tocar. Você começa assim: “aí pessoal, é o seguinte, esta música que eu vou tocar…”

Eu sempre gostei de falar entre as músicas no meu concerto. Só não faço isso quando estou na frente de um público que obviamente não tem familiaridade nenhuma com os idiomas que eu falo.

Mas agora, se eu vou estreiar uma obra… Por exemplo, o Liduíno Pitombeira me mandou uma música não faz muito tempo e eu vou estreiá-la. Ninguém sabe quem ele é, tirando alguns colegas, e da música ninguém sabe muito bem o que esperar. Daí eu vou lá e falo, com maior prazer inclusive, eu adoro. Até abro pra perguntas! Acho que essa comunicação vai aumentar cada vez mais e mais, à medida que o próprio formato do concerto é rediscutido… E isso tem que ser reformulado.

Essa fórmula a que a gente chegou, do recital que o cara entra quieto e sai calado, pensando “deixa o Debussy falar”… E o público finge que entendeu… Isso continua tendo seu lugar, tendo o seu valor, mas menos e menos isso vai ser a pedra-de-toque, a principal experiência musical da vida dos ouvintes.

TIAGO: O quanto você acha que o contato com compositores pode ajudar na formação de jovens músicos?

FÁBIO: Acho que tudo que você faz além do seu próprio métier só tem a acrescentar. Se o cara quer ser um solista, ele deveria considerar muito seriamente não ser solista por um tempo, e deveria ainda mais seriamente considerar estudar um pouco de composição. É importante até pra você achar sua vocação.

Vou falar de uma pessoa que talvez você até conheça, a Luciane Cardassi, uma ótima pianista que hoje está no Canadá. Foi minha colega de classe, e ela tocava os Prelúdios de Chopin, as Sonatas de Mozart. Entrou na USP com aquele perfil típico de menina do interior que estudou no conservatório da cidade, e quando chegou lá, ela se viu colocada, até meio involuntariamente, em situações em que ela tinha que tocar música dos compositores que estavam ativos ali, colegas dela e tal. Ela teve uma segunda vida musical. Hoje, ela só toca isso. Até pra você entender melhor qual é a sua relação, o seu caminho com a música.

TIAGO: Pra terminar, eu queria te fazer uma pergunta bem aberta. Algo como: qual o papel da música na sociedade?

FÁBIO: Nossa, aí eu vou ter que filosofar, não sei bem o que te responder. Se você puder fechar um pouco a pergunta…

TIAGO: Não sei se eu consigo fechar muito também… Digamos, o que é ser artista hoje?

FÁBIO: Seguinte: meus bisavós chegaram no Brasil pra trabalhar em fazenda de café. Os filhos deles, foram trabalhar na indústria ferroviária… Meu avô construiu ferrovias, muitos dos meus tios eram maquinistas… A segunda geração da minha família é de ferroviários. O meu pai começou a trabalhar muito cedo, mas conseguiu estudar o suficiente para trabalhar na indústria automobilística. E pra que toda essa trajetória? Para que eu talvez pudesse fazer aquilo que eu gosto.

Acho que no final das contas, isso é um reflexo da organização que o país vem tendo, de dar mais oportunidade das pessoas escolherem qual o seu papel no mundo, seu papel na vida.

E quando você escolhe ser artista, vem a questão sobre qual o impacto que isso tem na sociedade. Tirante o impacto de transformação social, que hoje em dia a gente vê nesse grande número de projetos inspirados pelo modelo venezuelano, alguns deles mantidos pelo governo, outros pela iniciativa privada, acho que o tipo de arte que a gente faz tem um papel civilizatório muito forte. Acho que é o patrimônio do que a humanidade fez de melhor… Um artista, completamente crápula, no momento em que sentou na escrivaninha e escreveu seu melhor poema, ele estava em um estado de exaltação que nos leva a entender o que o espírito humano é capaz de fazer. Acho que é o retrato daquilo que podemos fazer de melhor no momento em que nos colocamos na situação de transcender suas limitações e tentar compreender o universo de uma maneira maior. Acho que é o retrato mais acabado. Como não dá para a gente chegar numa lousa e escrever um teorema matemático, a gente mostra uma sinfonia de Brahms. É o resultado de séculos e milênios do aprimoramento do pensamento abstrato.

É como se você erigisse um monumento à capacidade do ser humano em desenvolver uma atividade completamente sem nenhuma função prática ou adaptativa. É um surplus de energia, de conhecimento que a gente desenvolve, pra fazer um negócio que não serve como máquina de guerra nem de sobrevivência! Mesmo que minha arte pudesse transformar a sociedade… Eu não tenho muita convicção que ela a transformaria pra melhor, então eu prefiro operar transformações mais modestas, dentro da sensibilidade das pessoas.

E, apesar disso tudo, eu observo em mim que eu não seria a pessoa que sou se eu não tivesse sido transformado por Beethoven. Isso aí mudou completamente a minha maneira de ser, minha maneira de me relacionar com as pessoas, o caminho que minha vida tomou, como eu lido com minha família e meus amigos… A sensibilidade com que eu lido com o mundo. E isso é uma transformação brutal, de grandiosas proporções. Me transformou em outra pessoa.

 

Fábio Zanon é violonista.

 

 

Tiago de Mello

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